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Acho que mudei um pouco aquilo que achava sobre prioridades. Antes de engravidar achava que o mundo era um pouco mais sensível do que é — talvez porque eu e aqueles que me são próximos são — e era da opinião que o tema prioridades era uma questão de bom senso. Depois de engravidar apercebi-me que o bom senso que eu imaginava que existia, escasseia. Durante muito tempo não pedi para ter prioridade, não me sentia bem e na verdade, não necessitei. Da gravidez do Gonçalo devo ter utilizado a prioridade enquanto grávida umas duas vezes na farmácia e mesmo no final da gestação. Depois de o Gonçalo nascer também usei a prioridade umas quantas vezes quando tive que estar na fila com ele na segurança social, nos correios, etc… Ainda tive algumas chatices, funcionários antipáticos e sem vontade de reconhecer a prioridade e pessoas que não gostavam que eu tivesse prioridade que me chegaram a dizer «eu também tenho um filho, está na escola e tenho que o ir buscar!». Não discuti, não me irritei e confesso que até senti vergonha de pedir. Não sei bem porquê, de facto uma grávida não deve esperar o mesmo que os outros, por melhor que seja a gravidez, não é confortável. E um bebé até dois anos é impossível de aturar numa fila, eu não levo os meus porque dá jeito, levo-os porque tem mesmo que ser, por isso também percebo que se facilite a vida às pessoas. Já sei que há quem se tente aproveitar, mas duvido que alguém deixe de levar os miúdos para a escola para ir para a fila da loja do cidadão. É cortesia. Ou devia ser. Na verdade teve que passar a ser lei para se efectivar.
Na gravidez dos gémeos a coisa ficou diferente. Desde cedo que fiquei com uma grande barriga, desde cedo que me custava estar em pé e no último mês custava-me tudo. Nessa altura pensei: a prioridade existe, é um direito que me assiste, não vou tentar explicá-lo ou justificá-lo a quem não quer compreender. Vou usar do meu direito com educação.
Finanças. 15h30 da tarde. Eu grávida de gémeos de 32 semanas. Retiro a senha B32 e verifico que vai na B28. Não existem senhas prioritárias. Um cartaz informa que aqueles que têm direito à senha prioritária devem retirar a sua senha normalmente e dirigir-se ao balcão que está a atender essas senhas e solicitar o atendimento com prioridade. Foi o que fiz. A funcionária, com poucos modos, disse-me para aguardar na zona de espera (zona onde não existiam lugares sentados livres e onde ninguém se levantou para me dar o lugar, por sinal) que já me chamava.
Passado pouco tempo anunciou para a zona de espera:
«A senhora que solicitou prioridade, quem é?»
Eu identifiquei-me e avancei. Nisto, uma senhora passou-me à frente, indicou que também tinha prioridade e não sabia que era necessário pedir. A funcionária barafustou algo, eu disse que se existia alguém com prioridade à minha frente, claro que essa pessoa devia ser atendida, e cedi a passagem, indo-me sentar no lugar da senhora que se levantara. A senhora dirigiu-se ao balcão, mostrou um atestado e a funcionária, de forma muito mal-educada e bastante alto, informou-a «que isto não é assim», «atestado multiusos muitos têm», «isso não dá direito a prioridade».
E aos berros, perguntou-me:
«E a senhora, tem prioridade porquê?».
Incrédula, ri-me.
«Olhe, agradeço que pergunte, mas acho que se vê bem: estou grávida…».
«Ai e gravidez é prioridade? Não pode esperar sentada?»
Não sei como é que mantive calma. Senti-me meio humilhada. A funcionária tentou diminuir-me à frente de todos para não me dar prioridade, como que a dizer-me que eu não podia esperar porque era parva.
«Não, não posso». Aproximei-me dela, para não lhe gritar, com o respeito que não teve para comigo, e expliquei que tinha a certeza que tinha direito a ter prioridade por estar grávida e que não era eu que achava, era a lei. Das duas uma: ou me concedia prioridade, ou teria que escrever no livro de reclamações. Não vacilei. Embora tivesse ficado nervosa, fiquei irritada pela maneira como me tratou e deixei claro que sabia que tinha prioridade e não ia desistir.
A funcionária chamou a Directora de Serviço, que, antes de tudo, lhe pediu para ela falar baixo, demonstrado desde logo ter mais educação. Depois explicou-me o que eu tinha que fazer para ter direito a ter prioridade, como se EU estivesse a errar. Eu expliquei-lhe que foi assim que procedi, a funcionária é que entendia que eu não tinha direito a ter prioridade. Então a Directora indicou-lhe que eu estava «notoriamente grávida» e que tinha que ser atendida.
Dirigi-me para a cadeira do balcão da grandessíssima vaca que me atendeu munida da minha viola invisível para ela pôr no saco e não tirei um sorrisinho sarcástico da cara o tempo todo.
Mas depois de sair pus-me a pensar e achei toda a cena tão escusada. Tão triste. Não nego que o facto de ter aparecido uma senhora que, de facto, não tinha direito a prioridade possa ter baralhado a funcionária, mas a senhora não foi mal-educada, só tinha que ser informada. A funcionária é que foi mal-educada com a senhora e comigo, tentando ridicularizar o exercício de um direito que me assiste. Talvez se eu não conhecesse a lei tão bem, e se não tivesse algum à vontade com leis porque as estudei, me deixasse intimidar e me sujeitasse a esperar numa sala de espera que se tinha tornado hostil. Ninguém gosta de esperar. Nem todos têm o bom senso de perceber que algumas pessoas têm direito a ser atendidas antes e ficam rancorosas. Se a hostilização surgir das pessoas que trabalham nos sítios pior é!
Já me cederam a vez várias vezes e quando posso esperar, quando os bebés estão a dormir ou quando estava grávida e não estava especialmente cansada, explicava que podia esperar e deixava-me estar na fila. Também me aconteceu pedir para ser atendida antes e a senhora que estava à minha frente dizer-me «desculpe, eu sei que tem prioridade, mas eu só quero uma coisa rápida e tenho o carro mal estacionado, importa-se?» e eu disse que não, esperei mais 1 minuto se tanto e a senhora foi atendida e saiu a voar. Com educação, toda a gente se entende. Eu pelo menos tento que assim seja. Mesmo quando tiro senha prioritária e passo à frente sem ter que pedir, tento ser rápida e agradeço às pessoas que me cedem a passagem. As Finanças não são um sítio onde se espere pouco tempo, eu estava exausta, tinha andando a tratar do Gonçalo de manhã e começava a sentir algumas contracções naquela altura e tinha pedido boleia à minha mãe porque já não me sentia confortável a conduzir, por isso não queria esperar, e tinha que ser eu a tratar daquele assunto. Podia esperar? Claro que podia. Não há dúvidas sobre isso. Podia esperar, não estava em trabalho de parto, nem tinha instruções para estar de repouso absoluto. Eles acabaram por nascer prematuros e só eu sei como me culpo por não ter abrandado mais um pouco no final, mas sim, naquele dia podia ter esperado. É delicado? É cortês? É digno de uma sociedade civilizada? Não acho.
Dias depois da cena das Finanças fui à Primark comprar coisas para a mala de maternidade. A fila estava a andar bastante rápido e tinha pouco mais que três pessoas porque fui a uma hora mais calma. Meti-me na fila normal e nem esperei. A funcionária atendeu-me e enquanto passava as coisas na caixa registadora disse-me «A senhora tem prioridade, não tem que esperar na fila. Para a próxima dirija-se à caixa n.º 1 que é imediatamente atendida».
Lembrei-me logo da outra cena. Folgo em saber que uma entidade privada trata a lei e os cidadãos com mais respeito que um organismo público.
Tenho este texto escrito há imenso tempo e vim agora editá-lo e publicá-lo porque tenho visto imensas pessoas com dúvidas sobre a lei em grupos de mães e lembrei-me.
Aproveito para deixar estas notas sobre a lei sobre o atendimento prioritário (Decreto-Lei n.º 58/2016, de 29 de Agosto):
- Todas as entidades públicas e privadas devem prestar atendimento prioritário a determinadas pessoas.
- Essas pessoas são:
- Pessoas com deficiência ou incapacidade;
- Pessoas idosas (com idade igual ou superior a 65 anos e que apresente evidente alteração ou limitação das funções físicas ou mentais);
- Grávidas; e
- Pessoas acompanhadas de crianças de colo (aquela que se faça acompanhar de criança até aos dois anos de idade).
A pessoa com direito a atendimento prioritário que o veja negado deve chamar a polícia.
Sobre a prioridade a crianças de colo, notem que a lei não diz crianças «ao colo», diz «de colo». É um conceito que se preenche com a idade da criança e não com a forma como a trazemos. Não há necessidade de pegar na criança só porque se fala em colo, por favor! Se disserem isso, estão errados. E não tem que ser a mãe.
Se quiserem saber mais procurem aqui e aqui.
Conheçam os vossos direitos, e vamos todos tentar que a lei seja cada vez menos necessária e tudo funcione com naturalidade. Para isso é preciso não esquecer que a lei concede um direito geral, indiscriminado, porque não há como adaptar a situações em específico. A ideia é proteger aqueles que precisam de protecção. Como sempre é susceptível de abusos. Nunca vi, mas oiço falar de pessoas que vão com os filhos só para passarem à frente, que são mal educadas e agem como se fosse tudo delas. É verdade que a lei concede o direito de atendimento prioritário, mas não é menos verdade que as pessoas à frente de quem se passa também têm direito a ser atendidas e estão a ceder a passagem porque se encontram em melhores condições de esperar. Isto significa duas coisas: que não as devemos maltratar para exercer o nosso direito e que o devemos exercer sempre que sintamos que efectivamente não estamos nas mesmas condições para esperar.
Be kind and amazing things will happen.